Bahia. Salvador. Itapuã. Lagoa rodeada por dunas de areia branca? Lagoa do Abaeté. E por que tamanho encanto e mistério? Normalmente, as areias das praias de Salvador são douradas, daí, sua personalidade. O mistério fica por conta de suas inúmeras lendas. Falo sério!

Com uma diversidade de significados, alguns dizem que Abaeté vem da língua tupi e significa “pessoa boa e honrada”. E alertam para não confundir com Abaíté que significa “pessoa terrível, ruim”. Outros afirmam que o nome significa “terror, horror” e é uma referência ao fato de a lagoa ser considerada um lugar mal-assombrado.

Os lendários garantem que pela cultura tupi, Abaeté teria sido um Morubixaba. Ou seja, um cacique, um líder ou ainda um chefe temporal de uma tribo. Conta a lenda que este Morubixaba foi levado por Uiara (Mãe d’água) para o fundo da lagoa. Os nativos passaram a ouvir cânticos e vozes vindos do fundo das águas. Por isso, em homenagem ao “Grande e Honrado Chefe”, denominaram a lagoa de “Abaeté”. Rompemos, aqui, um dos inúmeros segredos que cerca tais águas.

Já segundo Theodoro Sampaio, geógrafo, escritor e historiador baiano, o nome de origem tupi (abá-etê) significa homem forte, ilustre, homem de bem (O Tupi na Geografia Nacional).

Ana Dantas
Doces e encantadoras águas do Abaeté
Uma verdadeira nascente de beleza!

Controversas à parte, o fato é que a lagoa é, certamente, um dos ícones da exuberante natureza da Bahia, onde a beleza da paisagem, a diversidade cultural e a representação simbólica da baianidade formam uma tríade bem singular e ao mesmo tempo plural.

O contraste da areia branca com a coloração escura de suas águas é um charme. Sua fauna e flora habitam desde orquídeas, cajueiros e coqueiros até peixes, camarões, pitus e cobras d’água. Uma abundância sem igual! O local em lua cheia deve ser pura aventura visual. Amaria contemplar uma dessas lua cheia, deitada em suas areias!

Historicamente, Itapuã era uma aldeia de pescadores afro-ameríndios que tinham uma boa relação com a natureza do mar, coqueiros, dunas e restingas, afinal eles também eram sua fonte de subsistência. Enquanto na beira da praia, a comunidade se desenvolvia, as dunas, em volta da lagoa, eram resguardadas para uso ritual e simbólico. Era um vilarejo bem animado por tradições de deuses e heróis míticos.

Nos anos 1930, Itapuã foi descoberta por jovens aventureiros, artistas e intelectuais. Todos entusiastas por aquele jeito bem peculiar de se viver do mar ou experienciar o mar. Em 1948, Dorival Caymmi (1914-2008) eternizou, em música, a lagoa quando compôs a canção “A lenda do Abaeté”.

Ana Dantas
Doces e encantadoras águas do Abaeté
Pura emancipação feminina

Numa narrativa, digamos, mais recente, as lavadeiras da Lagoa do Abaeté e as ganhadeiras sucediam o matriarcado religioso das mães-de-santo que se dedicavam para manter os bons presságios entre os homens e os deuses. Todas viraram referência cultural!

Essas mulheres se reuniam para conversar sobre as antigas tradições de Itapuã, cantar e dançar samba de roda. Com tamanha singularidade, o grupo já recebeu e foi indicado para vários prêmios: de culturas populares a música. E, também, claro, essas senhoras participaram em tantos outros shows com artistas renomados como Alcione, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Dois recentes ápices em sua trilha cultural: participaram do encerramento dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro em 2016 e foram tema de escola de samba no Carnaval 2020, aliás, presenteando o título de campeã para a Escola de Samba Unidos do Viradouro ao cantar a liberdade e emancipação feminina com o enredo “Viradouro de Alma Lavada”. Uma linda recordação para a história da escola!

Ana Dantas
Doces e encantadoras águas do Abaeté
E os mistérios do Abaeté?

Ah! Esses são os melhores. Muitas lendas surgiram em torno das águas doces e escuras. A antiga lagoa de Itapuã era reverenciada como sagrada pelos adeptos do candomblé. Dizem, aliás, que é a lagoa preferida de Iemanjá, ou uma das mais apreciadas, garantiu Caymmi em 1978.

Outros confirmam que tem morrido muita gente afogada ou desaparecida na lama do fundo. Todos são engolidos em inexplicáveis sumidouros e pelos redemoinhos. E tem mais, os antigos escravos diziam que as vozes eram da sereia Janaína (nome popular do orixá de Iemanjá, conforme o candomblé).

Já os estudiosos do candomblé afirmam que um ancestral divinizado estabelecera vínculos a fim de controlar certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas.

Talvez por isso, os turistas temiam (ou temem) o banho em suas águas doces sustentadas por nascentes que surgem no meio das dunas. Certamente as lavadeiras ajudaram a manter vivas muitas das tradições ancestrais que enriquecem a cultura de Salvador. Um luxo em dias de hoje!

Ana Dantas
Doces e encantadoras águas do Abaeté
Um palácio encantado e um Príncipe sedutor

Para os colonizadores europeus, nas águas do Abaeté havia um palácio encantando onde residia um príncipe com toda a sua corte. Ele era o dono dos peixes e das forças das águas. Este príncipe encantava as pessoas que se aproximavam da lagoa e as carregava para o fundo das águas. Também adoro essa versão do príncipe sedutor. Fico imaginando a cidade repleta de pessoas que ele seduziu e levou para o fundo da lagoa.

Para conter a ação predatória do local e preservar as belezas naturais da lagoa, foi criada a área de proteção ambiental. Ou seja, depois de tanto estrago, equívocos e desacertos da administração pública, em 1987 foi criada, por decreto estadual, a Área de Proteção Ambiental – APA das Lagoas e Dunas do Abaeté, mas somente em 3 de setembro de 1993 que as obras do parque foram inauguradas, salvo engano.

Com um ecossistema dunar típico do quaternário, Abaeté é uma das lagoas do complexo de restingas que existia entre Itapuã e Ipitanga. Uma diversidade de fauna e flora consideravelmente grande. Há que se cuidar!

Ana Dantas
Doces e encantadoras águas do Abaeté
Pôr do sol da literatura e artes

Cantada por Caymmi, fotografada por Verger, sacralizada por comunidades afro-baianas, urbanizada pelo Estado, Abaeté é única. Em 1958, Mário Cravo fez a escultura da Sereia que foi colocada sobre pedestal na chegada da praia. Em todas as artes, tais águas doces foram reverenciadas: música, cinema, saraus, literatura, artes plásticas e visuais. Enfim, esse pequeno lago, seus mistérios e encantos é um verdadeiro patrimônio natural local.

A Lagoa do Abaeté, as senhoras cantadeiras, ganhadeiras e lavadeiras com suas histórias e vozes de tom muito peculiar me inspiraram a escrever um livro que em breve será lançado pela Editora Paulus. No livro, a história de Teté, uma descendente de escravos, e seu filho João ganha força do amor genuíno sob o ponto de vista da intrínseca superação desses moradores da praia de Itapuã. Aguardem! Novidades em breve pelas minhas redes sociais.


8 comentários

Andrea · 28/07/2020 às 1:54 PM

Realmente uma pintura!!!!

Maria Schlaepfer · 28/07/2020 às 7:14 PM

Maravilhoso escrito vou mandar para minha mãe a infância dela foi aí parabéns como sempre vc sabe descrever como ninguém

    Ana Dantas · 29/07/2020 às 7:13 PM

    Maria, gratidão por compartilhar, por dividir as amorosas lembranças de sua mãe. Natureza que os olhos jamais se esquecem. Fato!

Simone Oliveira · 29/07/2020 às 9:17 PM

Aiii que alegria! Vc me fez viajar nessa saudosa cidade e seus pontos turísticos. Parabéns pelo lindo trabalho!

    Ana Dantas · 30/07/2020 às 7:33 PM

    Ah! Mone, só quem já esteve na Bahia, nasceu lá pode sentir esse sentimento genuíno. Isto é fato! Gratidão por comentar e me visitar por aqui.

Augusto Cesar · 30/07/2020 às 9:20 PM

Que texto maravilhoso. Viajei pela história e terminei escutando Caymmi. Adoro esses “causos”. Obrigado minha querida

    Ana Dantas · 03/08/2020 às 1:06 PM

    Augusto, meu querido, que delícia te ver por aqui e melhor ainda que lhe provoquei escutar Caymmi. Boa escolha, sempre! Gratidão pelo comentário e carinho.

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